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Comportamento / Qualidade de vida

Pacientes com doenças raras, elas viraram influenciadoras digitais

Fernanda Martinez e Lorena Eltz usam seus espaços na internet para desmistificar a convivência com síndrome de Ehlers-Danlos e a doença de Crohn

Sabrina Castro, com supervisão de Vivian Ortiz Publicado em 19/10/2021, às 08h30 - Atualizado às 12h45

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Doenças raras e bolsinha de estomia: conheça duas influenciadoras digitais cheias de representatividade - Instagram/@lorenaeltzz | Instagram/@apenas.fernanda
Doenças raras e bolsinha de estomia: conheça duas influenciadoras digitais cheias de representatividade - Instagram/@lorenaeltzz | Instagram/@apenas.fernanda

Nas caixinhas de perguntas, a maioria das dúvidas são sobre doenças. Os recebidos também contam com bolsinhas de estomia e massageadores para dores crônicas. As ‘publis’ são de trabalhos terapêuticos. Fernanda Martinez e Lorena Eltz fazem parte de uma rede de influenciadoras digitais mais inclusiva, usando as redes sociais para expor que são muito mais do que suas doenças.

Lorena acorda, faz uma maquiagem leve - que também já ensinou aos seguidores, em um vídeo no Instagram - e interage com as redes sociais. Naquele dia, ela ia fazer um ensaio fotográfico para um evento internacional em que iria palestrar. Horas antes, fez uma postagem celebrando os dois meses de uma cirurgia importante: na ocasião, ela removeu partes inflamadas do intestino grosso e, como perdeu boa parte dele, acabou trocando sua colostomia por uma ileostomia.

A diferença entre os dois métodos é simples: na colostomia, uma parte do intestino grosso é colocada para fora e, por ela, eliminam-se as fezes completas. Na ileostomia, a excreção de um material intestinal líquido é feita por uma parte do intestino delgado.

Lorena tem doença de Crohn, um problema autoimune com efeito transmural, ou seja, que afeta todas as camadas da parede do intestino. “Pelo caráter transmural, os sintomas obstrutivos por estenose, sangramento intestinal, cólicas abdominais e diarreia com muco e sangue são os sintomas mais prevalentes”, explica Henrique Perobelli, gastro-proctologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.

Característica de doenças raras, o diagnóstico demorou para chegar - e, quando foi finalmente informado à paciente, deixou alívio. “Até então a gente não sabia o que estava acontecendo, quanto tempo que eu ia durar… Ter um nome foi melhor, porque conseguimos começar a pesquisar sobre a doença e formas de tratamento. Viver na dúvida é bem pior”, conta a influenciadora, em entrevista para AnaMaria Digital.

CUIDADOS COM A ESTOMIA
Apesar das dores, Lorena não teve maiores problemas no intestino até 2012, quando passou por uma inflamação grave que não melhorava de jeito nenhum. Na ocasião, o médico que cuidava do caso afirmou que teria de tirar uma parte do órgão da menina. Ele, porém, não deu nenhuma orientação antes da cirurgia, e apenas aplicou os anestésicos e removeu o necessário. Quando a futura criadora de conteúdo acordou, ela já estava com a bolsinha - e não fazia ideia do que aquilo significava. 

Nestes momentos, destaca-se o papel da enfermeira estomaterapeuta, que auxilia o paciente a compreender esta nova fase. Enquanto os médicos cuidam do diagnóstico e conduzem o tratamento e as enfermeiras generalistas prestam os cuidados básicos, são os estomaterapeutas que ouvem uma série de dúvidas dos pacientes: o que as pessoas vão pensar? Que roupa eu vou vestir? Poderei trabalhar? Como vou pegar meu filho no colo? Vou poder ter relação sexual? Posso nadar, ir para praia? O que posso comer? E beber? Como trocar os equipamentos? Onde comprar? 

Estas foram algumas das questões ouvidas várias vezes por Mônica Costa Ricarte, estomaterapeuta e diretora da Associação Brasileira de Estomaterapeutas (Sobest). O enfermeiro com esta especialização - que, além de cuidar de pessoas com estomias, também trata de pacientes com feridas e com incontinências - precisa, principalmente, ajudar o paciente a reorganizar a sua vida diária. 

“Cuidar da estomia é secundário. Antes de tudo, cuidamos de pessoas que tem estomia. Daí a importância e o destaque para esses dois fatores: autoimagem e a autoestima. Posso dizer que cuidar da estomia é fácil, o desafio está em identificar quais são as necessidades especificas daquela pessoa naquele momento, e estruturar, junto com ela, um plano de cuidados individualizado”, explica a profissional. Para isso, todos os enfermeiros contam com uma grade curricular que conta com treinamento psicológico ainda durante a graduação.

Ao chegar o momento de adquirir as bolsinhas, a coisa não fica mais fácil. Afinal, existe uma imensa variedade de marcas, modelos, composições e apresentações, para situações distintas. Para isso, profissionais da saúde e usuários do produto precisam de um treinamento intenso - um dos papéis de Silvia Moreira, também enfermeira estomaterapeuta e assessora de desenvolvimento científico para os cuidados da pessoa com estomia na empresa Convatec.

“A escolha do equipamento coletor está diretamente relacionada à manutenção da saúde da pele ao redor da estomia e como este fato influencia nas atividades diárias e na saúde física e mental após esta nova condição de vida”, conta ela. A própria Silva tem uma ileostomia: assim como Lorena, a doença de Crohn afetou todo seu intestino grosso e, aos 17 anos, teve de recorrer à cirurgia. 

A vivência como ileostomizada e a experiência profissional de Silvia são tratadas por ela como “conexão de via dupla”. Os dois fatores contribuíram para que, com muita empatia, a profissional seja uma facilitadora na vida de pessoas ostomizadas, na tentativa de amenizar os medos, os traumas e as inseguranças que este processo pode trazer.   

FELIZ COM CROHN
Enfrentar as dúvidas terapêuticas e clínicas, porém, seria apenas o início deste processo na vida de Lorena. Depois, veio uma complicação que já era perceptível também desde pequena: a pouca socialização com os colegas da escola. A menina já percebia “olhares estranhos”, pessoas que a viam como a “menina doente”, que sempre faltava às aulas. Com a bolsinha de colostomia, ficou ainda pior. 

“Eu queria esconder de todo mundo, eu não queria que ninguém soubesse, e comecei a inventar várias desculpas. Não ia ao banheiro da escola para esvaziar minha bolsa, por exemplo. Várias vezes eu liguei para a minha mãe e pedi para ir para casa porque estava passando mal e tinha vergonha de falar o que estava acontecendo”, conta.

A jovem não é a primeira pessoa com deficiência que se sente desconfortável em espaços que, na teoria, deveriam ser inclusivos - especialmente as escolas. Vale lembrar que, não tem muito tempo, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, declarou que estudantes com deficiência “atrapalham” o aprendizado de outros alunos. Este, inclusive, foi tema de uma de suas postagens. 

Neste ano também foi promulgado o Decreto 10.502/2020, que estabelece uma nova PNEE (Política Nacional de Educação Especial). A medida prevê que pessoas com deficiência, estudantes com autismo e alunos superdotados sejam atendidas apenas em instituições específicas, com classes especializadas. “O que muitos têm discutido sobre a nova política é que o decreto pode incentivar a segregação dos alunos especiais e, também, pode abrir margem para que as escolas convencionais não aceitem mais a matrícula de alunos com deficiência”, pontua o advogado Sérgio Vieira. Além disso, o Decreto seria inconstitucional, uma vez que as leis garante que PCDs tenham acesso à educação, de preferência em instituições regulares de ensino.

Isto está de encontro com outra situação mencionada por Lorena: o isolamento de pessoas com deficiência. “Muita gente nem conhece PCDs. Isso é triste porque mostra que pessoas com deficiência estão isoladas em suas casas, com as suas famílias. As cidades não são acessíveis, os lugares não são acessíveis, então as pessoas com deficiência se escondem, ainda, não porque querem, mas porque o mundo ainda não nos recebe”, explica.

APOIO DOS AMIGOS
Com o tempo, Lorena se aproximou de uma amiga, que também costuma aparecer bastante em suas redes sociais. Maya dá o suporte que os demais colegas nunca puderam - ou quiseram - dar. “É muito bom ter uma possa me sentir à vontade, que eu possa falar tudo, como que me sinto, como sou de verdade, mostrar minha bolsinha; que eu sei que, se a gente estiver juntas e eu passar mal, ela sabe cuidar de mim… Então é uma relação de muita confiança, mesmo”, conta.

Além de já se sentir muito diferente, mais uma situação a preocupou: sua sexualidade. Em um primeiro momento, ela não costumava pensar nisso - por ser uma mulher com ostomia, acreditava que ninguém nunca iria gostar dela. Além disso, PCDs podem se sentir compelidos a corresponder uma carga de inocência e infantilidade que muitas vezes a sociedade joga sobre elas.

A questão é que Lorena se descobriu como lésbica. “Eu tive muito medo de ser aceita pelas pessoas mais uma vez por conta disso, mas contei com o total apoio dos meus pais dos meus seguidores na internet, então foi um processo que eu compartilhei com as pessoas e que, no fim, deu tudo certo”, diz.

Conquistar praticamente 600 mil seguidores na Internet fez com que Lorena compartilhasse cada vez mais os momentos da sua vida. Durante a cirurgia mais recente, em que ficou ausente das redes sociais por cerca de 72h, sua mãe teve de dar atualizações constantes sobre seu estado de saúde, acalmando os fãs preocupados. Apesar de ter pensado duas vezes antes de decidir se realmente gostaria de dividir todo o processo, a escolha veio de um âmbito mais pessoal: ela gostaria de criar um conteúdo que poderia acalmar e inspirar pessoas que passariam pela mesma situação que ela - coisa que a própria influenciadora não teve.

Antes de servir de referência para outras pessoas, o perfil de Lorena é parte importante da sua própria força. Poder mostrar o processo que levaria a um resultado positivo era uma forma de também se encorajar, de desviar seus pensamentos, de evitar com que ela afundasse em uma cama de hospital, preocupada. 

Ter a possibilidade de entrar na sala de cirurgia contando com as energias positivas de 600 mil pessoas ainda causa emoção na jovem - tanto que, ao falar sobre o fato, a voz fica trêmula e levemente mais aguda. “Fiquei muito feliz de poder gravar os vídeos e falar que deu tudo certo. Realmente devo o sucesso da minha cirurgia e da minha recuperação também a todo mundo que orou por mim, porque tinha muita, muita, muita gente torcendo para que isso acontecesse”.

CONVIVENDO COM DOENÇAS RARAS
O alívio com o diagnóstico também foi um sentimento mencionado por Fernanda Martinez, que porta a síndrome de Ehlers-Danlos - afinal, conviver sem um norte para um tratamento é extremamente difícil. No seu caso, a doença afeta as articulações, pele, vasos sanguíneos e órgãos - especialmente o estômago e intestino, que foram “paralisando aos poucos”. Depois de diversos tratamentos falhos, a influenciadora recorreu a uma estomia e também a uma sonda de alimentação - uma vez que sempre que comia passava muito mal, ao ponto de desenvolver uma desnutrição severa. 

Existem diversos tipos de síndrome de Ehlers-Danlos. De forma simples, o nome refere-se a um grupo de doenças que impactam a formação de colágeno - basicamente, os responsáveis por fixação e estruturação dos tecidos, que, por sua vez, dão forma a todo o nosso organismo - que afetam cada portador de uma maneira, além de ter diferentes causas genéticas (inclusive hereditárias). “Elas são geralmente caracterizados por hipermobilidade articular (articulações que se movimentam mais do que o normal), hiperextensibilidade da pele (pele que pode ser esticada mais do que o normal) e fragilidade do tecido”, explica Mateus Lamari, médico especialista em SEDs que atende a criadora de conteúdo.

A hipermobilidade de Fernanda era tanta que ela era considerada um prodígio na ginástica artística, uma de suas atividades extracurriculares na escola de educação infantil. A menina passou da turma inicial à avançada em pouco tempo, de forma surpreendente. Hoje, ela admite que teria preservado as articulações se soubesse do diagnóstico - que só chegou na adolescência. Ainda segundo Lamari, pacientes que têm o diagnóstico na infância e iniciam um tratamento com foco na prevenção de problemas futuros podem conviver sem nenhum sintoma. 

De fato, a subnotificação é uma realidade para portadores das SEDs. As doenças, além de pouco conhecidas pela população em geral, também são pouco divulgadas entre os próprios médicos. Para piorar, não existem exames laboratoriais, de imagens e mesmo testes genéticos acessíveis que auxiliam na avaliação do caso. O especialista precisa fazer entrevistas e testes com mais de 200 itens, tanto com o paciente quanto com seus familiares, para poder chegar a um veredito.

Pesquisas recentes sugerem que, sim, há uma associação entre as SEDs e sintomas gastrointestinais, sejam os estruturais (como hérnias e prolapso retal) quanto os funcionais (como uma mobilidade intestinal desordenada). No caso de Fernanda, todos os movimentos peristálticos - feitos pelo estômago para a digestão - e intestinais foram paralisados. Por isso, a jovem usa uma sonda de gastrojejunostomia, que permite acesso ao estômago e ao intestino ao mesmo tempo.

“A parte G (posicionada no estômago) fica aberta algumas horas por dia drenando saliva, ácido, bile e ar que o estômago não consegue esvaziar e se acumula. A parte J (posicionada no intestino) fica recebendo uma fórmula completa e balanceada, água e alguns medicamentos. Como o meu intestino também é afetado, não consigo tolerar a dieta em frascos que ficam no alto se esvaziando com a gravidade. Por isso, fico conectada por quase 24h a um aparelho que tem capacidade para infundir a fórmula mais lentamente e de maneira controlada e precisa. Eu como até enquanto durmo, qual o super poder de vocês?”, brinca, em uma postagem no Instagram.

Por isso, Fernanda não come há praticamente três anos. E, sim, ela sente fome - afinal, ela não se alimenta pelo estômago. Mas o que a influenciadora destaca é como isso afetou suas relações sociais no início - os amigos e familiares ficavam com receio em comer na frente dela, e a própria criadora de conteúdo ficava frustrada por não poder dividir as refeições com eles. Com o tempo, a situação foi se ajustando: hoje, ela acompanha a mãe nas refeições, participa de datas comemorativas e até marca encontros com os amigos em cafés.

Além da SED, a jovem convive com outra doença: a urticária aquagênica - basicamente, uma alergia à água em qualquer natureza e temperatura. Além de, obviamente, a condição afetar seus banhos, várias são as interferências em sua vida: evitar ficar suada ou pegar chuva, não entrar no mar ou piscinas, secar as lágrimas rapidamente… “No meu caso, quanto mais me exponho, mais fortes ficam as próximas reações, então faço um meio termo entre os sintomas e a frequência para os banhos de corpo inteiro. Higiene é saúde”, explica.

Nesse processo, a jovem contou com o apoio da mãe, dos amigos e do namorado, com quem está junto há mais de 8 anos. Inclusive, a infantilização da pessoa com deficiência, também mencionada por Lorena, é um ponto que ela debate: além da sociedade colocar PCDs como “anjos”, ainda chamam de “heróis” quem mantém uma relação com elas. Diferentemente de Lorena, porém, os amigos ajudaram seu período de aulas - afinal, sua saúde piorou quando estava no segundo ano do ensino médio.

Nas redes sociais, Fernanda costuma fazer textos sobre sua relação com a doença. Um dos pontos mais importantes é aceitar seu diagnóstico - o que não é parar o tratamento e esperar pelo fim. “Aceitar significa conhecer e viver em paz com sua condição, reconhecer limites e também reconhecer sua força. Muitas pessoas dirão que é sinônimo de derrota, mas, na verdade, é uma prova de amor próprio e tanto”, conta.

TROCA
O que une as duas meninas é a criação de conteúdo para a internet, dando representatividade para pessoas que convivem com as mesmas doenças. Lorena destaca que, quando buscava sobre o tema, só encontrava pessoas mais velhas falando sobre. Por isso, ela criou o DII Jovem, um grupo específico para pessoas mais novas, em parceria com o DII Brasil, a associação nacional para pacientes com doenças inflamatórias intestinais. O objetivo é dividir as histórias da escola, da faculdade, dos primeiros amores, das descobertas da vida, com outras pessoas que também convivem com estas doenças. Assim, o grupo, com participantes de todo o Brasil, socializam em reuniões que acontecem uma vez por mês.

Por outro lado, Fernanda menciona a importância de expor essa convivência com as doenças de forma aberta. “Quando eu recebi meu diagnóstico, eu me senti sozinha. Sentia falta de outras pessoas que estivessem levando a mesma vida e que falassem sobre isso publicamente, não apenas em grupos fechados. Sentia falta de um lugar que pudesse ser acessado por todos os públicos para mostrar a nossa realidade, que nós existimos e precisamos falar sobre isso”, afirma.

Tanto que, nas redes sociais, as duas jovens também falam sobre o capacitismo, conscientizando pessoas sem deficiência sobre a importância da inclusão, da remoção de termos preconceituosos do vocabulário (usar “retardado” como ofensa ou “dar uma de João-sem-braço” como sinônimo de preguiça, por exemplo e da acessibilidade em todos os espaços.

Nesse sentido, Fernanda também desabafou sobre ser constantemente usada como exemplo de “força” e “superação” - afinal, falar das pessoas com deficiência dessa forma apenas reforça estereótipos capacitistas. “A minha dor não invalida a dor de outra pessoa e vice-versa. A minha vida não é pior que a de ninguém por eu estar fora dos padrões idealizados, por eu ter uma doença rara ou ter uma deficiência”.

Hoje, ambas encaram o trabalho com muita responsabilidade. Com a comunidade que construiu, Lorena se sente mais “aceita” - e, para ela, tudo é fruto da seriedade que encara o trabalho em frente e atrás das câmeras. Por sua vez, Fernanda pretende trazer ainda mais visibilidade para doenças raras e pessoas com deficiência.