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Últimas Notícias / Religião ou política?

O que está acontecendo no Afeganistão em 2021? Entenda

Na primeira vez que o grupo assumiu o poder, mulheres não podiam estudar, trabalhar ou sair de casa sem a companhia de um homem

Sabrina Castro, com supervisão de Vivian Ortiz Publicado em 20/08/2021, às 15h41 - Atualizado em 23/08/2021, às 16h30

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Mulheres serão as mais afetadas pelo grupo, que proíbe que elas estudem ou trabalhem - Pixabay
Mulheres serão as mais afetadas pelo grupo, que proíbe que elas estudem ou trabalhem - Pixabay

Pessoas se pendurando na parte externa de um avião para fugir do país. Pais jogando seus filhos sobre cercas, implorando para que militares estrangeiros os levassem para longe. Estas e outras imagens representaram o desespero da sociedade afegã após o retorno do Talibã ao poder do Afeganistão, concretizada no último domingo (15). Basicamente, isso aconteceu após os Estados Unidos retirarem suas tropas do país após 20 anos de ocupação, deixando a passagem livre para que o grupo extremista tomasse o poder novamente. 

No mesmo dia, o presidente Ashraf Ghani saiu de Cabul, capital do país, criando condições para que o palácio presidencial fosse tomado pelo Talibã. Infelizmente, as consequências serão desastrosas, considerando o primeiro ‘governo’ do grupo - o Talibã controlou o Afeganistão entre 1996 e 2001, até que os norte-americanos invadiram o país para combater o grupo terrorista Al-Qaeda, responsável pelo atentado das torres gêmeas, e que havia sido acolhido pelos fundamentalistas afegãos.

Em 2017, os rumos começaram a mudar. O Talibã emitiu uma carta para o presidente Donald Trump, pedindo que ele retirasse as forças dos EUA do Afeganistão. Eles assinaram um acordo de paz em 2020: Trump prometeu liberar militantes presos, enquanto os líderes extremistas concordaram que o país não serviria de asilo para grupos que ameaçassem a segurança dos norte-americanos.


Integrantes do Talibã no palácio presidencial (Crédito: Divulgação/Vídeo).

O acordo, porém, não dizia nada a respeito do próprio Afeganistão. O país, que passou a viver em uma democracia, viu tudo ser destruído após a saída dos apoios estrangeiros (não só os EUA, mas o Canadá e alguns países da Europa também estavam presentes no país). As forças de segurança afegãs ofereceram pouca resistência e, em alguns dias, os militantes do grupo estavam sentados nas cadeiras de todas as esferas do poder.

MAIOR ORGANIZAÇÃO
“Diferentemente de antes, hoje o grupo extremista está mais organizado e consiste em um líder soberano, três delegados, um conselho com 26 membros e comissões com atuações nas áreas militar e econômica”, explica Fabiano de Abreu, historiador e pós-graduado em antropologia. Mawlawi Hibatullah Akhundzada, o mandante do grupo, é a principal autoridade política, religiosa e militar do Talibã. Ele também é diretamente responsável pelas punições para quem desrespeitar as regras do grupo - que vão desde cortar as mãos de ladrões até esmagar homossexuais sob uma parede de tijolos.

Segundo os dados do Índice Global do Terrorismo, publicado em 2019, o Talibã é o maior grupo terrorista da história,sendo até mais violento do que o Estado Islâmico. Para se ter uma ideia, em 2018, o Talibã foi responsável por 38% do total de fatalidades em atos terroristas no mundo (6103 mortes); 71% a mais na comparação com o ano anterior.


Multidão aglomerou em aeroporto, tentando deixar o Afeganistão; duas pessoas se penduraram na área externa do avião e caíram (Crédito: Satélite Maxar Technologies).

RELIGIÃO OU POLÍTICA?
Na primeira vez que eles assumiram o poder, eram comuns execuções públicas com açoitamentos e apedrejamentos. Gangues paramilitares circulavam pelas ruas e a censura atingia todos os veículos de comunicação. 

Mulheres e LGBTQIA+ foram os mais afetados pelo grupo: 

  • qualquer relação sexual com alguém do mesmo gênero era punida com a morte;
  • mulheres não podiam trabalhar, estudar ou sair de casa sem a autorização expressa do marido ou de outro familiar homem - nestes casos, viúvas poderiam morrer por não conseguir ir ao mercado, por exemplo, já que não há homens que possam fazer isso por elas. 

Vale lembrar da ativista pelos direitos das mulheres Mina Mangal, afegã que foi morta a tiros pelo grupo quando saiu de casa, em Cabul. Tudo isso, de acordo com os fundamentalistas, seriam princípios da religião islâmica. 

Mas não são apenas as minorias que estão fugindo do país. A própria população muçulmana não concorda com os ideais antidemocráticos do Talibã. Isto revela que, na realidade, a religião em si não é o problema. É a interpretação extremista do grupo, em prol de interesses políticos e econômicos, que causam o terror das pessoas.

“Um ensinamento no próprio Alcorão [equivalente muçulmano a Bíblia] afirma não haver compulsão na religião; a imposição não vem do Islã, e sim de pessoas que usam a religião como instrumento para atingir interesses políticos e sociais. E, quando isso acontece, o primeiro grupo a perder força são as mulheres”, conta Fabíola Oliveira, influenciadora feminista e muçulmana. 

UM ALERTA
Mayra Cardozo
, advogada especialista em direitos humanos pela Universidade Pablo de Olavida de Sevilha, Espanha, a agenda política do Talibã não é muito diferente de países ocidentais com governos conservadores que não pregam o islamismo. “Vejamos: desprezo pela democracia e pelo autoritarismo, rejeitar a ciência, pregar a ideia de Estado com caráter religioso, posicionamento contrário a legalidade do casamento gay e ao aborto e o intuito de preconizar o ensino fundamentalista religioso”, descreve.

O grupo, portanto, quer que a população local - incluindo as mulheres - se curvem a sua própria interpretação da religião. Interpretação essa que, para Fabiola, Mayra e Fabiano, são corrupções dos princípios religiosos. “Tudo pode ser deturpado. Afinal, são humanos. Humanos errando, dominando e trazendo todo esse sistema que o Islã sempre barrou. O sistema que oprime, que tira direitos”, explica a influenciadora.

No final das contas, como ressalta Mayra, nenhuma religião está isenta de que pessoas interpretem e usurpem os seus valores para instituir grupos extremistas. Mais do que isso, o próprio início do grupo está mais relacionado com a política do que com preceitos islâmicos: o Talibã foi formado em 1994, com o apoio dos Estados Unidos, para combater as forças soviéticas na região. Desde então, eles atuam no formato de guerrilha.

MAS E A BURCA?
Desde que o Talibã assumiu o poder do Afeganistão, uma das imagens mais divulgadas foi o “antes e depois” da jornalista Clarissa Ward, da CNN. Em um dia, rosto e cabelos descobertos e apenas um lenço no pescoço; no outro, um véu cobrindo inteiramente os cabelos e uma "abaya", vestido de manga comprida que vai até o chão. A imagem se tornou uma espécie de símbolo da opressão das mulheres defendida pelo Talibã.


"Antes e depois" de Clarissa Ward, repórter da CNN, foi intensamente divulgado nas redes sociais (Crédito: CNN).

Além da imagem ser imprecisa - no seu perfil no Twitter, a jornalista declarou que sempre usou véu em gravações externas; na primeira imagem, ela só se encontrava descoberta por gravar em estúdio -, é necessário entender o contexto do país antes de julgar essas fotos. A vestimenta islâmica não é sinônimo de repressão: “ela pode ser religiosa, mas também pode ser vários fatores: um marcador identitário, um marcador cultural; algo que remete a sua origem, a sua ancestralidade”, declara Fabiola.

Disseminar que o véu é o problema pode ser configurado como islamofobia, o preconceito contra símbolos e a própria religião islâmica. Mais do que isso, é diminuir a cassação de direitos femininos pelo Talibã. A burca pode se tornar um problema a partir do momento em que ela não é mais uma escolha da própria mulher, e sim uma obrigação. Por outro lado, a obrigação de não usar a vestimenta também é uma violência, e não uma salvação.

No artigo "As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?", a antropóloga Lila Abu-Lughod questiona justamente isso: porque, em momentos como este, o Ocidente pouco se preocupa com os desdobramentos da história ou da política, sempre vendo as respostas no campo da religião? Na ânsia de ajudar, é preciso se colocar em um lugar de escuta e entender quais as reais demandas dessas mulheres.

"É preciso muito cuidado para que a ‘ajuda’ do Ocidente não se transforme em uma espécie de colonização. Por isso, eu aconselho sempre o contato com as lideranças dos movimentos locais; saber ouvir de quem sofre, quais são as demandas e quais são as necessidades, e não imaginar nada com base da sua perspectiva ocidental”, explica Mayra. 

DAQUI PRA FRENTE
Em entrevista, o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid, disse que as mulheres são parte essencial da sociedade, e, por isso, o Talibã garantirá todos os direitos delas “dentro dos limites do Islã". O discurso faz parte de uma estratégia do grupo, que pretende passar a imagem que possuem uma política mais moderada do que a observada entre 1996 e 2001.

As perspectivas não são nada boas, mas é possível que os fundamentalistas sejam mais moderados, tentando se aproximar da Rússia e da China, que já reconheceram o governo. Afinal, os dois países tem interesses políticos na região; enquanto os russos pretendem criar mais parceiros em seu “quintal”, além de combater os avanços do Estado Islâmico, a China quer manter a segurança em relação aos terroristas, e, claro, fazer um contrapeso político em relação aos Estados Unidos. 


Cidadãs afegãs com os filhos (Crédito: Getty Images)

Fabiano ressalta a possibilidade de uma nova “guerra fria” - período entre 1947 e 1991 em que havia uma tensão política entre blocos de países “comunistas” e “capitalistas”. Por isso, os países precisam tomar atitudes logo, antes que os fundamentalistas se fortaleçam e formem parcerias. 

Por outro lado, é preciso cuidado: impedir o comércio com o Afeganistão, por exemplo, pode tornar a vida ainda mais insustentável para quem acabou ficando no país, e, assim, violando mais direitos humanos. Para Mayra, o ideal é que os países forneçam auxílio humanitário e abram as suas fronteiras para pessoas refugiadas. Afinal, segundo informações da âncora da CNN Carol Nogueira, cerca de oito mil pessoas já deixaram o território afegão pelo aeroporto da capital, Cabul.